segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

A minha amiga rádio...

A marcar a estreia da cooperação com os programas de músicas do mundo existentes nas restantes rádios locais e regionais portuguesas, no próximo dia 18 de Janeiro o MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO irá marcar presença, a convite do realizador, na segunda hora do Canto Nómada, o programa de música tradicional portuguesa e do mundo que André Moutinho apresenta às quintas-feiras, entre as 22 horas e a meia-noite, na Torres Novas FM (100.8 FM). Em alternativa, a emissão poderá ser escutada a partir de sexta-feira no podcast oficial.

Eis o texto da crónica:

"Esta semana, no âmbito de um trabalho de introspecção pessoal, uma estudante minha conhecida procurava descobrir alguns objectos que tivessem influenciado a sua vida. Na lista figuravam nomes como a banda desenhada ou o caderno de apontamentos, mas para ajudar a jovem a encontrar outras referências, decidi então juntar-me à reflexão.

Em meia dúzia de segundos dei conta de que uma das coisas que me acompanha desde sempre é a minha amiga rádio. De acesso universal, funcionamento simples e linguagem clara, a rádio é tão versátil e dinâmica como um livro que se abre. Pegando algures no fino espectro electromagnético, e num pequeno virar de frequência, com ela conseguimos atravessar meio mundo, criando cenários tridimensionais imaginários que, apesar de efémeros, não deixam de aspirar à ordem do onírico e do intemporal. Uma obra esboçada pela pena leve da estática, onde cada um pode escrever a sua história recorrendo sobretudo ao vocabulário da acústica.

Esta minha paixão platónica foi materializada no rádio, aliás, num dos muitos rádios que nas duas últimas décadas me foram passando pelas mãos. A pilhas ou eléctricos, com ou sem onda curta, saída estereofónica ou entrada para microfone, a interminável linhagem de receptores foi quase toda ela sacrificada em nome da oitava arte. O motivo era bom – procurar a alma deste dispositivo capaz de transformar electricidade em sons passíveis de significância –, mas o resultado foi apenas um retorcido emaranhado de circuitos integrados, teclas órfãs e fios descarnados, já sem vida.

Na minha infância, o iPod era uma caixa de sapatos onde guardava as cassetes quando ia de férias para o campo, algumas delas meros registos de conversas disparatadas com os primos, outras compilatórios dos sucessos que iam passando no éter. À noite, quando os sons ganhavam autonomia perante a natureza e o pequeno rádio se escondia por debaixo do lençol, deixando acesso unicamente um led vermelho, era a vez dos novos acordes e cacofonias sonoras em modulação de frequência, e das vozes distantes do entendimento em amplitudes imaginárias, tantas quanto os rostos encobertos por elas.

Terminado o breve exercício de introspecção, entre todos os transistorizados que conheço escolhi o leitor de cassetes, hoje desmaterializado no vulgar mas muito prático reprodutor de MP3. A magia que se reproduzia diariamente à minha frente saía reforçada por aquele ronronar de fita e pelo clique mecânico que se ouvia no final da cassete, quando as cabeças de leitura e gravação subiam.

Agora que o audiovisual se desmaterializou numa infinidade de suportes virtuais, discorrer acerca das virtudes da centenária rádio pode parecer puro saudosismo. Mas a saudade aqui é apenas a do futuro da radiodifusão, daquilo a que técnica e arte algum dia hão-de dar lugar. Para além da palavra, âncora da personalidade inclassificável da telefonia, a salvação da rádio será o cruzamento de conteúdos com outros meios e plataformas.

Se no que toca à técnica o podcast se destaca na lista das potencialidades emergentes, já em relação aos conteúdos 2006 foi mesmo o ano dos programas de música do mundo nas rádios locais e regionais portuguesas, género infelizmente ainda raro nas emissoras de cobertura nacional. Apesar da escassez de meios técnicos e de recursos com que todos os obreiros radiofónicos da world music se deparam, é preciso continuar a apostar em conteúdos que extravasem a leviandade musical vingente. Esta é uma oportunidade de ouro para que se criem novos formatos, novos músicos e novos públicos. Analógica por tradição ou revestida pelo cristalino som digital, a minha e a sua amiga rádio continuará então a ser uma construtora de consensos e ponte privilegiada de aproximação entre culturas e saberes."


Jorge Costa

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