quinta-feira, 17 de maio de 2007

Considerações acerca da música do mundo

A propósito do desafio lançado por uma finalista da licenciatura em Jornalismo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que se encontra a preparar uma reportagem escrita acerca do interesse crescente pelas músicas do mundo, aqui ficam as respostas às questões que me foram colocadas pela jovem estudante:

MARTA POIARES: É um facto que as músicas do mundo suscitam um interesse crescente e amplo, hoje em dia. Porque é que acha que tal está acontecer?

JORGE COSTA: Antes de mais o conceito de “músicas do mundo” é algo ambíguo, dado que por vezes serve para caracterizar géneros que pouco ou nada têm a ver com a música de raiz tradicional ou étnica, independentemente desta cada vez mais ser alvo de experimentação e de fusão com sonoridades actuais e urbanas. No entanto, essa mescla é extremamente salutar, não só porque a música é um organismo vivo, em mutação e em interacção permanente, mas também porque num mundo “glocalizado”, realidade tornada possível pelas redes globais de comunicação, o multiculturalismo e as identidades culturais minoritárias ou de menor expressão tiveram finalmente a oportunidade de ser mostrar e de rivalizar com as expressões culturais dominantes, ainda que por vezes, nesse gesto de colagem aos padrões universais, percam parte da autenticidade que as distingue.

É uma fuga à ditadura cultural anglo-saxónica ou a simples procura de um novo fenómeno musical?
Essas serão duas das muitas causas possíveis. Parte do interesse despertado, sobretudo junto dos jovens, mais permeáveis a novas experiências sonoras, creio que se deverá não só à saturação causada pela arrogância e inércia do mercado discográfico e radiofónico, que cada vez menos investe em fórmulas e formatos diferentes e alternativos, mas também à curiosidade demonstrada por estes perante universos musicais até há pouco tempo desconhecidos e que mantêm ainda um certo grau de pureza, organicidade e frescura. Num mundo inundado por matéria sonora de toda a espécie, creio que o público sente cada vez mais a necessidade de ter um filtro, referências mais duráveis no tempo e uma visão crítica acerca do que ouve. E o facto de as músicas do mundo não poderem ser desligadas de um contexto social e cultural específicos faz delas um material com alma e uma identidade bem vincadas, o que as diferencia claramente das fórmulas mais sintéticas e analíticas, acusticamente complexas, mas por vezes sem qualquer tipo de densidade.

O que é que distingue as músicas do mundo das outras?
Convém lembrar que no caso das músicas do mundo, o exercício de escuta continua a ser, de certa forma, um exercício antropológico. É sobretudo isso que as diferencia e que acaba por justificar a nossa tendência em criar pontos de referência que nos permitam identificar e relacionar um tema ou um autor com um género musical específico. No entanto, tal nem sempre é fácil de fazer. As sub-categorias criadas por musicólogos e investigadores, e as combinações moleculares de géneros com que artistas ou grupos se tentam diferenciar dos restantes, como se se tratasse de um processo de catalogação de espécimes musicais únicos, acabam por vezes por ser contraproducentes ou por gerar alguma confusão junto do público menos habituado a esta incomensurável panóplia de termos. É um terreno pantanoso, em grande parte ainda inexplorado, mas que por isso mesmo torna as músicas do mundo tão únicas e apetecíveis.

António Pires, autor do blogue “Raízes e Antenas”, diz ser impossível formular uma enciclopédia de músicas do mundo. Onde começa e acaba esta categoria?
Provavelmente, nem músicos nem especialistas na matéria saberão muito bem onde se situam claramente as fronteiras da música do mundo. É um universo aberto e em permanente mudança, que por isso mesmo escapa a convenções e a pressupostos fixos.

A música dita tradicional inclui-se nas músicas do mundo?
Todas as expressões populares, étnicas e de raízes tradicionais podem ser incluídas no universo das músicas do mundo, que no entanto cada vez mais são uma manta de retalhos sonoros, uma mistura de misturas, um fractal musical. Creio que é sobretudo por esta razão que se torna difícil ter uma visão enciclopédica acerca da world music, embora seja possível encontrarmos pontos em comum se regredirmos ligeiramente na sua cadeia evolutiva. Existem no mercado algumas publicações onde se tenta fazer uma aproximação semelhante, como é o caso do “Rough Guide to World Music”, com dois extensos volumes: um dedicado à África, Europa e Médio Oriente, e o outro à América, Ásia e Pacífico.

Nota que as publicações culturais, em Portugal, esquecem a world music?
Não só as publicações culturais, mas também os meios de comunicação em geral. Em Portugal continua a olhar-se com alguma desconfiança para os géneros musicais mais orgânicos e apegados à terra. Creio que os portugueses se relacionam mal não só com o seu mundo físico e com a natureza, mas também com a sua história (basta compararmo-nos com os galegos para perceber melhor a fonte do problema). E são estes os principais focos da música do mundo: identidade e culturalidade. Os media, em particular as rádios e televisões públicas, com responsabilidades acrescidas na matéria, insistem em ignorar isto. É inconcebível que a Antena 3, uma rádio estatal destinada a um público jovem, à revelia do que acontece com as restantes congéneres europeias, se dê ao luxo de ter apenas uma hora de músicas do mundo por semana (0,6 por cento da sua programação!). É completamente residual e uma afronta aos portugueses que todos os meses são obrigados a pagar a taxa audiovisual. Para além desta amostra de world fusion, existe um programa diário na Antena 2, se bem que com uma visão mais etnomusicológica e orientada para as raízes tradicionais. No que toca a rádios nacionais, a coisa fica por aqui. Apesar de tudo, existem alternativas, não só nas emissoras locais, com os programas de autor dedicados ao género, mas também na Internet, onde sítios, blogues, podcasts e fóruns, pouco a pouco, vão contribuindo para o crescente interesse pelas músicas do mundo.

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