sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Mari Boine: a voz mística da Lapónia

A embaixadora cultural dos sami recupera as entoações xamânicas do canto yoik, cruzando-o com ritmos de todo o mundo


Os sons xamânicos embalados pela voz melódica da cantora
(imagens:
Jorge Costa/Multipistas)

Ela é uma das mais conhecidas
artistas nórdicas em todo o mundo. Cantora mas também activista, a embaixadora cultural dos sami
tem vindo a lutar pelo reconhecimento dos direitos do povo autóctone da Lapónia, no norte da Escandinávia, bem como pela preservação da identidade do seus conterrâneos. Um dos maiores grupos indígenas europeus, com cerca de 70 mil indivíduos, empurrados ao longo de séculos para o tecto da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia.

“Recuperar a música desta cultura é também algo político, mesmo ainda hoje. No início, as minhas canções falavam muito sobre essa situação”, refere ao MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO a norueguesa Mari Boine, que a 15 de Fevereiro esteve no grande auditório do Teatro Municipal da Guarda, acompanhada por quatro músicos: o guitarrista Georg Buljo, o trompetista
Ole Jørn, o baterista Gunnar A
e o baixista Svein Scultz. “Na minha música quero trazer para fora a batida xamânica, os valores esquecidos da minha cultura e de outras culturas indígenas. Eu absorvo tudo o que está na natureza e no ambiente. Então, isso mistura-se tudo dentro de mim e sai na forma de música”.


Mari Boine falando sobre três décadas de carreira musical

A cantar desde 1980, Mari Boine descreve a dor de um povo até há pouco tempo proibido de falar na sua língua e de se expressar através do joik. Durante muito tempo, o canto mais característico dos sami foi visto pelos laestadianistas, os luteranos mais conservadores, como a música do diabo. Género minimalista que, ironicamente, é profundo e espiritual por natureza, mas que por vezes não resiste à tentação de se fazer acompanhar por um tambor ou outros instrumentos.

“Eu cresci numa comunidade muito restrita, onde a minha família e a maioria das pessoas decidiram seguir as regras da Igreja, dos padres e dos missionários. Eles não ensinaram aos filhos a sua música tradicional ou muitas das histórias porque isso era visto como pecaminoso e uma coisa do diabo”, explica a cantora. “Quando comecei a fazer esta música, os meus pais não aprovaram, e nunca chegaram a ir aos meus concertos. Muitas das pessoas mais velhas pensaram que ao ter começado a usar a bateria também era pecaminoso, mas agora que já faço isto há 28 anos, acho que essas vozes de quem estava contra já não são tão fortes. Os mais jovens estão mais abertos a estas coisas”.


A instrumentação moderna alia-se aos sons da Lapónia

Embaixadora cultural dos
sami, mas também cidadã do mundo, Mari Boine junta a música tradicional do seu povo com a riqueza rítmica e harmónica de outras culturas ancestrais. Um encontro que passa pelo cruzamento dos sons étnicos de África ou da América do Sul com influências mais actuais como o jazz, o rock, a pop ou mesmo a música electrónica. Peregrinações sonoras a que se juntam instrumentos como o violino árabe, o charango peruano, as flautas andinas ou as percussões africanas.

“Desde sempre que tenho vindo a misturar a música sami com ritmos de todo o mundo porque penso que sou uma pessoa universal”, confessa Mari Boine. “Sou sempre muito curiosa a todos os tipos de influência. Gosto muito da música africana, mas também dos ritmos de leste. E sempre gostei de música árabe”, acrescenta a cantora. “Quando eu era pequena, costumava ouvir rádio e andava sempre à procura de música, e cada vez que ouvia música árabe, não sei porquê, sentia que era algo que eu conhecia bem”.

Percussão e ritmo associam-se ao canto tradicional sami

Com quase trinta anos de carreira e mais de uma dezena de álbuns, Mari Boine tem vindo a colaborar com artistas internacionais como Peter Gabriel ou Jan Garbarek. Da veia xamânica do joik, assente numa escala pentatónica, a cantora norueguesa herdou o ritmo e as entoações do tempo em que o homem estava mais próximo da natureza.

“A batida xamânica está muito próxima do ritmo do coração”, diz Mari Boine. “Também há música maravilhosa na música ocidental, mas muita dela é demasiado artificial e superficial. No entanto, penso que muita da música antiga e das canções tradicionais de todo o mundo têm muito do coração e alma”, conclui a artista, fazendo ainda uma ponte com Portugal. “Por vezes ouvimos o fado turístico, mas o fado verdadeiro é que tem a alma”.

Espírito partilhado também com a sonora saudade portuguesa. São canções simples, erguidas pela voz mística de Mari Boine, um espelho da alma que se liga ao corpo através da música.

Mari Boine, acompanhada em palco pelos quatro músicos


Discografia:
1985 - “Jaskatvuođa Maŋŋá” - Etter Stillheten
1989 -
“Gula Gula” - Hør Stammødrenes Stemme/Hear The Voice of The Tribe's Mothers
1991 -
“Salmer På Veien Hjem”, com Ole Paus e Kari Bremnes
1992 - “Møte I Moskva”, com os Allians
1993 -
“Goaskinviellja” - Ørnebror/Eagle Brother
1994 -
“Leahkastin” - Unfolding
1996 -
“Radiant Warmth”, com Goaskinviellja e Leahkastin
-
“Eallin”, ao vivo
1998 -
“Bálvvoslatnja” - Room of Worship
2001 -
“Oa Hámis”, remisturado
2002 -
“Gávcci Jahkejuogu” - Eigth Seasons
2006 -
“Idjagieđas” - In the Hand of the Night

Jorge Costa

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