Na estreia do MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO, para além da apresentação do formato musical e de alguns temas em primeira-mão, destacou-se uma entrevista exclusiva para rádio realizada a Rão Kyao, que em Fevereiro regressou a Castelo Branco para o primeiro concerto do ano na capital da Beira Baixa. Um espectáculo que antecedeu os que em breve o músico irá realizar em Angola e nos Estados Unidos. Em palco, Rão Kyao fez-se então acompanhar por Renato Júnior (acordeão/sintetizadores) e Ruca Rebordão (percussões). Ausentes estiveram António Pinto (guitarras), André Sousa Machado (bateria) e a sonoridade inconfundível do cajón, instrumento de percussão formado por uma caixa de madeira.
O programa, emitido em directo no sábado, 18 de Março, entre as 17 e as 18 horas, na Rádio Urbana (Castelo Branco - 97.5 FM; Fundão, Covilhã e Guarda - 100.8 FM), vai de novo para o ar na segunda-feira, 20 de Março, entre as 19 e as 20 horas.
Estes são os temas difundidos na primeira emissão do MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO:
"Norwegian Mood", Groupa (Suécia) - swedish folk
Este tema foi extraído do álbum "Fjalar", editado em 2002. O grupo mistura novas dimensões musicais com sonoridades electrónicas, e desde a sua criação em 1980 que tem estado na vanguarda da moderna folk sueca. Nos Groupa encontramos uma imagem das tradições do passado, os caprichos do presente e as possibilidades do futuro.
Sambala", Rarefolk (Espanha) - freestyle folk/folk-rock
Em “Unimaverse”, o terceiro trabalho dos sevilhanos mais audazes do freestyle folk, editado em 2001, a banda mistura de forma criativa o universo do rock e da electrónica com a música africana, celta, oriental e até mesmo o jazz. O tema “Sambala” é uma amostra perfeita deste novo movimento folk.
"Mama", Mory Kanté (Guiné-Conacri) - afropop, kora music
Tema extraído do álbum “Sabou”, lançado em 2004 por Mory Kanté, um dos mais conhecidos músicos africanos da actualidade. Natural da Guiné-Conacri, o músico tornou-se inicialmente conhecido ao juntar-se na década de 70 à Rail Band, cujo som combinava funk e música tradicional. O estrelato viria nos anos 80 quando Kanté se mudou para Paris. Para além de músico, hoje Mory Kanté é embaixador das Nações Unidas na luta contra a fome.
"Paisa", Manak-E (Reino Unido) - bhangra, punjabi music
Tudo terá começado como uma dança folclórica que nasceu no norte da Índia. Mais tarde, o fenómeno britânico-asiático assimilou instrumentos ocidentais como a guitarra eléctrica, o baixo ou os teclados, transformando a bhangra numa forma energética e popular de música de dança. Uma das referências deste ambiente sonoro é o vocalista Manak-E, que neste tema extraído do álbum do mesmo nome envereda pelos caminhos do rock.
"Riena (Anathema)", Värttinä (Finlândia) - traditional finnish folk/suomirock
Nova incursão até ao norte da Europa, desta feita com os Värttinä, a mais conhecida banda da folk finlandesa, com um tema extraído do álbum “Miero”, editado este ano. Com mais de vinte anos de carreira, os Värttinä são conhecidos por terem inventado um estilo baseado nas raízes rúnicas e carélicas, nos cantos femininos de várias tribos ocidentais e na poesia antiga. Da imagem do grupo fazem parte a instrumentação acústica tradicional e contemporânea, os ritmos complexos, bem como as composições e os arranjos originais. Uma palete sonora que tem vindo a crescer. Neste seu último álbum, o grupo explora melodias ciganas e a música klezmer, entre outras, deixando para trás os arranjos pop.
A primeira adaptação mundial ao palco de "O Senhor dos Anéis" arranca esta semana em Toronto, no Canadá. A versão teatral da saga épica de Tolkien integra música composta pelos Värttinä e pelo compositor indiano A.R. Rahman. Trata-se de uma das maiores produções de sempre de teatro musical, cujo orçamento ronda 27 milhões de dólares canadianos, e cujo elenco integra mais de 60 actores e músicos. A produção irá estrear em Londres em 2007 e mais tarde em Nova Iorque.
"The Drunken Piper: Primrose Lasses/Far Am Mi Fhin/Father John Angus Rankin", Natalie MacMaster (Canadá) - celtic music/traditional folk
Na ilha de Cape Breton, na Nova Escócia (Canadá), metade da população é de origem escocesa, e uma das maiores estrelas da província é Natalie MacMaster, que toca rabeca desde os nove anos, tendo começado a sua carreira na adolescência. Desde então já tocou com diversos talentos internacionais como The Chieftains, Alison Krauss, Paul Simon, Carlos Santana e Luciano Pavarotti. Um tema extraído do álbum “No Boundaries”, e onde as raízes celtas dos dois lados do Altântico se cruzam.
"Bossa Nova, Né?", Luiz Macedo (Brasil) - MPB
“Bossa Nova, Né?”, é a pergunta que Luiz Macedo nos faz neste tema extraído do álbum “Bossa Electromagnética”. O conhecido produtor e guitarrista de São Paulo foi um dos pioneiros da música electrónica brasileira, a qual se desenvolveu sobretudo na década de 90, misturando ritmos brasileiros com estilos como o hip-hop, o drum’n’bass e o techno, tal como aconteceu na década de 50 com a bossa nova a misturar o samba com o jazz americano e mais tarde, já na década de 60, com o movimento da tropicália a absorver a pop da época.
"Su Dilluru", Mario Rivera & Tenores Di Orosei (Itália) - folktronica
Os desenvolvimentos tecnológicos também fizeram com que muitos artistas tradicionais italianos pegassem nos seus sons e os misturassem com batidas e ritmos electrónicos. É esse o caso de Mario Rivera, membro do grupo siciliano Agricantus, que aqui surge com um tema extraído do álbum “Roots’n’bass”, o seu primeiro trabalho a solo, editado em 2001. Um trabalho onde o baixista demonstra a sua habilidade em misturar sons do passado e do futuro em novas composições e remixes originais. Neste tema, a parte vocal está a cargo do canto polifónico do grupo sardenho Tenores di Orosei, exemplo perfeito da forma como os ritmos electrónicos podem ser conjugados com sons tradicionais.
"Msimu Kwa Msimu", X Plastaz (Tanzânia) - massai hip-hop/african rap
O grupo faz rap em swahili, kihaya e maa, a língua dos Maasai, misturando elementos tradicionais da cultura africana com o hip-pop. O tema foi extraído do seu primeiro lançamento internacional, editado em 2004.
ENTREVISTA A RÃO KYAO
Há mais de vinte anos, o instrumentista lisboeta fez-se ao mundo para se reencontrar com as origens de Portugal e descobrir novos caminhos para uma musicalidade marcada pelo contacto com diversos povos. Depois da música tradicional indiana, Rão Kyao cruzou-se com outros universos sonoros: do jazz ao fado, passando pela música cigana e pelo flamenco, até à música chinesa, árabe e brasileira. Uma carreira caracterizada pela procura e achamento de diferentes culturas e pela sempre persistente vontade de ligar o Oriente ao Ocidente.
Rão Kyao prefere a emoção e a espiritualidade, relegando para segundo plano a inovação estética. E não se considera um musicólogo. Antes procura dar uma nova expressão à musicalidade portuguesa, universo que diz ser injustamente preterido pela cada vez mais influente cultura anglo-saxónica. Do saxofone à flauta de bambu, seu instrumento de eleição e imagem de marca, o músico preza a tradição mas também a originalidade, que o têm acompanhado durante mais de duas décadas, tempo suficiente para editar dezassete discos. Quanto ao próximo trabalho, para já apenas estão reunidos alguns temas.
O músico esteve mais uma vez na cidade
(foto: Jorge Costa/Multipistas)
MULTIPISTAS: O que o levou a tentar redescobrir as raízes da música portuguesa no Oriente e a ter esse caminho como principal referência ao longo da sua carreira?
RÃO KYAO: O contacto com essa música fez-me repensar acerca da minha maneira de tocar e de me expressar. Foi também o olhar para as origens da música portuguesa e ver de onde vem esta maneira de se lamentar e de se cantar a alegria. Fascinou-me tentar perceber porque é que temos esta maneira típica de nos expressarmos, algo que não nasceu aqui e que foi fruto de várias confluências musicais. Então compreendi que Portugal foi ocupado por um povo com uma grande musicalidade, que marcou muito a nossa música: os árabes. Depois também percebi que os portugueses andaram pelo mundo inteiro e têm uma enorme capacidade de integração. Aliás, somos conhecidos por isso. E quando uma pessoa se integra com facilidade, deixa muita coisa aos outros e traz muita coisa também. Tudo isto e a influência que a música oriental teve na nossa música fizeram-me debruçar sobre ela.
Estamos a falar não só da música oriental, mas também da música cigana, andaluz, nordestina e inclusive do jazz. Ou seja, precisou de sair de Portugal para descobrir as origens da música portuguesa, o que parece paradoxal.
É tão contraditório como dizer que para evoluir é preciso olhar para trás. Temos de ver as nossas raízes para podermos ir para a frente, compreender onde está enraizada a nossa expressão para podermos arranjar novos caminhos. Parece uma contradição, mas não é.
Volvidos dezassete discos, acha que já conseguiu elaborar um mapa claro acerca das origens da música portuguesa?
Eu não sou um historiador da música portuguesa. Faço-o por uma necessidade musical e estética. Uma coisa que é muito importante para mim é o facto de podermos tocar no estrangeiro e apresentarmos uma musicalidade que tem a ver com as nossas origens. Mas interessa-me que quem me escute perceba que se trata de uma visão muito própria sobre a música portuguesa. Quero que a minha música tenha qualquer coisa de típico, mas que ao mesmo tempo seja original e saia de mim.
Foi essa vontade de inovar e de ser diferente que o levou a trocar o saxofone pela flauta de bambu?
Eu sempre toquei os dois instrumentos. A flauta sempre me acompanhou desde o meu primeiro disco, só que a partir de certa altura decidi envolver-me abertamente com a flauta de bambu. É um instrumento difícil, muito parecido com a voz, mas que tem uma flexibilidade muito grande. E como gosto de explorar ao máximo um instrumento, estudei mais abertamente todas as possibilidades da flauta de bambu, que é agora é o meu instrumento de eleição.
O fascínio pela cultura indiana levou-o a passar vários meses em Bombaim. O que é que o marcou mais: os vestígios da cultura portuguesa ou o país em si?
É uma sensação muito estranha, mas quando vamos a Goa estamos em casa. Ali encontra-se uma verdadeira fusão entre Portugal e a Índia. Quando vim de lá fiz um disco que reflectia a minha experiência na Índia musical, a que chamei precisamente «Goa», embora este não seja um disco de música goesa. É um sítio onde os portugueses e os indianos se encontraram e geraram um país fascinante onde se sente Portugal em todo o lado, mas que ao mesmo tempo é um Portugal indiano. Isto e o estudo que lá tive com o Ragu Nachet, um grande flautista da música indiana, foram coisas muito importantes para mim. Essa experiência ajudou-me muito a interiorizar ainda mais a flauta de bambu e a perceber como é que a música tem a ver com a nossa espiritualidade e com o nosso quotidiano.
Utiliza ritmos e sons que tem vindo a recolher em todo o mundo, mas nunca desaparecem as referências a Portugal. Neste último trabalho, «Porto Alto», regressa às origens geográficas, ao fado e ao folclore nacional. Pegando na letra de «Fado Nascente», dizer que “tem andado em busca dos antepassados da canção da nossa gente” pode ser uma forma de resumir a sua carreira?
(risos) Isso é uma letra interessante do José Pires, o marido da Deolinda Bernardo [fadista que participa também no álbum «Fado Virado a Nascente»]. É algo que gosto de fazer, mas não sou um tipo muito metódico. São coisas que compreendo intuitivamente e procuro mostrar, mas sempre tentando renovar essa expressão e encontrar formas novas de a apresentar. A nossa música tem uma riqueza muito grande, um canto e ritmos muito profundos, interessantes e variados. E está a ser muito preterida com a influência das grandes potências, que são potências económicas mas não musicais. Musicalmente, nós somos ocupados completamente pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, mas nem de longe é essa a música do mundo. Há muita música que é proveniente de países economicamente muito menores, mas que não conseguem alertar as pessoas para a riqueza que há nela. E nós também somos vítimas disso. Portugal não tem poder para se manifestar aos seus e lá fora. Esquecemo-nos da nossa própria música porque ela não nos é mostrada como deveria ser.
Já veio tocar várias vezes à Beira Baixa. Sente que a riqueza e a diversidade etno-musicológica desta região, à qual o maestro Lopes Graça chamava o alfobre da música popular, também está a ser esquecida?
A música da Beira Baixa é de uma riqueza extraordinária. Tenho já tocado e arranjado muitos temas que estão ligados a esta região, mas claro que, por vezes, em ambientes musicais que dêem para isso.
Discografia Rão Kyão:
▪ Porto Alto (2004)
▪ Fado Virado a Nascente (2001)
▪ Junção (1999)
▪ Navegantes (1998)
▪ Viva o Fado (1996)
▪ Águas Livres (1994)
▪ Delírios Ibéricos (1992)
▪ Viagens na Minha Terra (1989)
▪ Danças de Rua (1987)
▪ Oásis (1986)
▪ Estrada da Luz (1984)
▪ Macau o Amanhecer (1984)
▪ Fado Bailado (1983)
▪ Ritual (1982)
▪ Goa (1979)
▪ Bambu (1977)
▪ Malpertuis (1976)
Jorge Costa
sábado, 18 de março de 2006
Emissão #1 - 18 Março 2006
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