A fanfarra romena cruza a tradição balcânica com influências de todo o mundo, adaptadas ao seu estilo enérgico e festivo
A sincronia acelerada é uma das facetas deste grupo
(imagens: Jorge Costa/Multipistas)
Se o folclore tradicional dos Balcãs já não é novidade nos ouvidos do mundo, cruzá-lo com sonoridades de todo o planeta, sem nunca pôr de lado as origens étnicas, parece ser o grande feito da Fanfare Ciocărlia. Um grupo oriundo da pequena aldeia de Zece Prăjini (literalmente “Dez Campos”), zona montanhosa e isolada no nordeste da Roménia, junto à fronteira com a Moldávia, que a 7 de Setembro levou até ao grande auditório do Teatro Municipal da Guarda alguns dos sons mais característicos dos Balcãs. O resultado é um estilo único, enérgico e festivo, que faz dos elementos desta banda os reis da música cigana.
“A base da Fanfare Ciocărlia é a música tradicional, mas temos projectos com artistas de todo o mundo, em particular música cigana com influência de outros estilos para lhe dar continuidade", explica ao MULTIPISTAS – MÚSICAS DO MUNDO Costică Trifan, um dos trompetistas do grupo que em 2006 venceu os BBC Radio 3 World Music Awards na categoria Europa. "Temos projectos com lendas da música cigana como Esma Redzepova [a macedónia “rainha dos ciganos”], Šaban Bajramović [o sérvio é um dos expoentes máximos da música cigana], ou com estrelas da pop romena e búlgara como Dan Armeanca e Jony Iliev”, lembra o músico, citando também o espectáculo “Tiempo de los Gitanos”.
Costică Trifan fala sobre as origens da mediática fanfarra
As orquestras de metais remontam às bandas militares turcas que no início do século XIX ocuparam a Roménia e grande parte dos países balcânicos, como a Bulgária, a Macedónia, a Sérvia. No norte do país há que ter também em conta a influência secular da música húngara, tal como os sons jugoslavos e búlgaros, levados para aquela zona pelas comunidades ciganas nómadas e pelas cassetes piratas. São sons transmitidos de geração em geração, e que acompanham bodas, funerais e todo o tipo de cerimónias populares.
Danças tradicionais romenas e moldavas como a sîrba (“dança” em romeno), a hora (dança de círculo) ou a geamparale (popular dança da região de Dobrogea, caracterizada por ritmos balcânicos e turcos), bem como os ritmos turcos, húngaros, búlgaros, sérvios e macedónios, ou simplesmente a música tradicional rusească (russa), são então apresentados pela Fanfare Ciocărlia ao som de instrumentos não só de sopro (trompa, tuba, trompete, clarinete, requinta, saxofone e corneta), mas também de percussão (tímpano e bombo, tarola e bongo). O grupo tem vindo a colaborar com alguns dos expoentes máximos da música cigana em toda a Europa – entre eles, Ljiljana Butler (Bósnia), Mitsou (Hungria), Kaloome (França), Kal (Sérvia) e Florentina Sandu (Roménia) –, sem nunca esquecer a fusão entre os ritmos globais e o seu próprio estilo.
Sopro e percussão compõem a linha sonora da banda
"O nosso segredo é o de tocarmos o que aprendemos com as gerações mais velhas, música tradicional transmitida de geração em geração, e que é cantada e tocada de forma muito rápida", refere Costică Trifan, imediatamente traduzido do romeno para inglês por Helmut Neumann, tour manager do grupo, que acompanhou a entrevista em exclusivo ao programa. "Para além da música dos Balcãs, nós vamos recebendo influências de todo o globo, desde a música indiana ao jazz. Mas depois adaptamo-las ao nosso estilo próprio”.
O mapa sonoro da Fanfare Ciocărlia vai do folclore ao jazz
Actualmente, a Fanfare Ciocărlia (“laverca”, em romeno) é constituída por Costică ‘Cimai’ Trifan (trompete, voz), Paul Marian Bulgaru (trompete), Rădulescu Lazăr (trompete, voz), Oprică Ivancea (clarinete soprano, saxofone soprano), Daniel Ivancea (saxofone alto), Constantin ‘Pînca’ Cântea (tuba), Monel ‘Gutzel’ Trifan (tuba), Constantin ‘Şulo’ Călin (corneta tenor, voz, danças), Laurenţiu ‘Mihai’ Ivancea (corneta barítono), Costel ‘Gisniac’ Ursu (bombo) e Nicolae Ioniţa (percussão).
Os onze elementos começaram por tocar numa orkestar (orquestra) em cerimónias populares das redondezas, por vezes durante horas a fio, até que em Outubro de 1996 o produtor discográfico e engenheiro de som alemão Henry Ernst (que é hoje o seu manager), de visita à povoação, convenceu o grupo a sair do anonimato. O improviso e a interpretação acelerada de solos de clarinete, saxofone e trompete, por vezes com mais de 200 batidas por minuto, muito diferente das populares bandas de cordas ciganas, depressa despertaram o interesse internacional pelo grupo, que na Alemanha se apresentou pela primeira vez com a designação actual.
Os solos são um dos momentos altos do espectáculo
"Costumávamos tocar aos fins-de-semana em casamentos e baptismos. De manhã, íamos para a casa da noiva, enquanto esta se vestia, e então para a casa do noivo. Depois, tocávamos na igreja e para as pessoas. Era sobretudo música popular e tradicional da Roménia e da Moldávia", descreve o trompetista romeno. "Ao jantar, tocávamos música ambiente e, depois da refeição, música de dança. Mas à medida que as pessoas iam bebendo e ficando mais desinibidas, pediam géneros diferentes como o jazz”.
São histórias sobre a vida, o amor e a perda, cantadas em romeno ou em romani (dialecto cigano) por esta orquestra de metais. Hoje, os demónios acelerados do gypsy brass inspiram-se também em composições actuais, adaptando êxitos de Bollywood e Hollywood, como o tema principal de James Bond, interpretando melodias como “Caravan”, celebrizada por Duke Ellington, ou participando nas bandas sonoras de filmes como o popular e polémico “Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”, a que emprestam um cover de “Born The Be Wild”. Contam-se ainda as participações sonoras no filme “Gegen Die Wand” (2004), do realizador alemão Fatih Akin, e em “Crimen Ferfecto” (2004), do realizador espanhol Alex de la Iglesia.
As atenções viraram-se para eles quando o berlinense Ralf Marschalleck realizou o documentário “Iag Bari – Brass on Fire” (2002), road movie sobre a dicotomia entre a vida do grupo na sua aldeia natal e o bulício das digressões mundiais da fanfarra, galardoado no Festival de Cinema Documental Musical de Barcelona e Madrid, e no Festival de Produção para TV e Rádio de Skopje, na Macedónia. Um dos seus temas foi mesmo remisturado pelos britânicos Basement Jaxx, estrelas da música electrónica de dança.
O peso dos instrumentos não aligeira a boa disposição
No seu último trabalho discográfico, uma folk cigana balcânica com impressões fortes de funk, pop, rumba ou flamenco, a Fanfare Ciocărlia presta tributo ao clarinetista Ioan Ivancea, fundador e patriarca da banda, falecido em Outubro de 2006, e atravessa o Atlântico imaginando como seria o jazz se tivesse sido inventado por músicos ciganos.
"Apesar de agora andarmos por todo o mundo e de estarmos longe de casa, regressamos sempre à nossa aldeia, que continua a ser o local ideal para criarmos a nossa música”, conclui Costică Trifan.
Como é tradição, a animação segue do palco para a rua
Uma música acompanhada sempre de perto pela plateia, que celebra em pleno a identidade cigana e o espírito das fanfarras romenas. Como é hábito, e para provar que as tradições ainda são o que eram, a festa continuou no final do concerto. Saindo pelo topo da sala, a banda 'marchou' para a entrada do teatro da Guarda, acompanhada pelo público que lhe fez companhia durante mais alguns minutos.
VÍDEO...↓
Entrevista Fanfare Ciocărlia + tema ao vivo “Ciocărlia Si Suite"
Discografia:
- "Queens and Kings" (2007)
- "Gili Garabdi - Ancient Secrets of Gypsy Brass" (2005)
- "Gypsy Brass Legends" (2004)
- "Iag Bari - The Gypsy Horns From The Mountains Beyond" (2001)
- "Baro Biao - World Wide Wedding" (1999)
- "Radio Pascani" (1998)
DVD:
– “Gypsy Brass Legends - The Story of the Band” (2004)
Jorge Costa
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